Dificuldades atuais de quem precisa plantar o próprio remédio legalmente

Dificuldades atuais de quem precisa plantar o próprio remédio legalmente

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

A vida de pacientes que precisam da cannabis medicinal não é fácil. Principalmente quando o plantio é necessário, mesmo com o risco de ser preso por tráfico.

Desde que o documentário Ilegal, que conta a história da pequena Anne Fisher mostrou os benefícios medicinais da cannabis, muitas famílias começaram a apostar no tratamento alternativo.

Tanto que segundo a Coordenação de Controle e Comércio Internacional de Produtos Controlados (Cocic), foram mais de 5.100 solicitações de importação de produtos à base de cannabis só até o mês de junho do ano passado, 4.314 a mais que o ano todo de 2015, quando as importações começaram a acontecer.

No entanto, o valor dos medicamentos ainda é alto e inacessível para boa parte da população, que escolhem plantar em casa.

Como no caso da Elaine Cristina da Silva, que mora em Pernambuco com o seu filho Pedro, que tem epilepsia de difícil controle.

Com cerca de 26 convulsões diárias, ela passou a viver quase que exclusivamente para o filho. Pedro não emitia sons, não se comunicava por causa do espectro autista. Além disso, foi dado como cego, surdo e mudo. Os médicos chegaram a dizer que ele não passaria disso.

Ela conheceu a cannabis medicinal em 2015. Começou com dois remédios importados, um com concentração de canabidiol (CBD) e outro com Tetrahidrocanabinol (THC).

O óleo com THC fez mais efeito, por isso ela até chegou a entrar com uma ação na defensoria pública de Pernambuco para que o estado pagasse a importação.

Contudo, o que realmente mostrou uma melhora significativa foi o óleo artesanal, também com a concentração de THC maior.

Elaine conta que nas primeiras semanas já viu a diferença. Pedro começou a prestar atenção ao que estava acontecendo ao seu redor, começou a emitir sons, até a chorar. “Eu vi o meu filho sorrir pela primeira vez”. Conta.

Em 2019, ela entrou com um pedido de habeas corpus para poder cultivar e fazer o óleo da cannabis em casa. Três meses depois, veio a resposta positiva. “Foi um dos dias mais felizes da minha vida”, ressalta.

Hoje ela planta o remédio do filho no quintal junto com outras mães de um coletivo feito por elas, chamado de Mães Independentes. Estas que também conseguiram o habeas corpus.

“Acabei saindo como candidata a vereadora no ano passado, todo mundo sabe que eu cultivo e não tive medo” acrescentou.

O que a lei diz

Atualmente, mais de cem pessoas possuem o famoso salvo-conduto, que dá o direito de plantar cannabis sem o risco de ser preso.

Embora a maior procura pelos efeitos terapêuticos da planta seja para casos de epilepsia de difícil controle, já saíram notícias de habeas corpus para autismo, dores crônicas, depressão e até para enxaqueca.

Os pedidos são feitos com base na Lei 11.343/2006, que estabelece, no parágrafo único do seu art. 2º, que a União pode autorizar o plantio, o cultivo e a colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas para fins medicinais ou científicos.

Como é o caso da cannabis. No entanto, é uma autorização individual, ela não permite que o paciente venda ou ceda a planta cannabis, sementes ou derivados para consumo ou comercialização dos outros.

Mas a contradição da lei na prática é ter que mostrar que o óleo artesanal funciona para conseguir o direito de cultivo.  

Riscos

Ao contrário de Elaine, o aposentado Gilberto Castro (46) não teve a mesma sorte. Ele tem Esclerose Múltipla, e também precisa da cannabis para conter as dores e controlar a doença.

A condição é progressiva e não tem cura. Existem alguns tratamentos que ajudam a retardar o progresso da doença, mas os medicamentos sempre precisam ser trocados por uma medicação mais forte.

Isso acontece porque o corpo começa a criar uma espécie de defesa contra os remédios, que passa a não gerar mais efeito. “Eu só podia ficar com uma medicação por no máximo, por 4 anos”, ressalta.

No entanto, o seu organismo ainda está aceitando o remédio Natalizumab há oito. O aposentado acrescenta que a doença não progrediu mais por causa do complemento com o tratamento alternativo feito com a cannabis.

Foto: Drika Coelho

Aqui Gilberto Castro utilizava a famosa maconha prensada. No entanto, segundo ele, é inferior à plantada na sua casa. Para cada condição, ela precisa de uma concentração certa de canabinoides, moléculas da planta que afetam o organismo. Como o CBD, por exemplo.

Sem contar que sem uma regra ou legislação, o consumidor nunca sabe o que realmente está consumindo. A maconha prensada no país pode ser um tanto quanto perigosa. Há relatos da mistura de urina, café, esterco, parte de animais e árvores, o que faz a ilegalidade ser apenas um detalhe.

Gilberto continua fazendo o tratamento convencional no Hospital São Paulo, a cannabis é um tratamento alternativo que ajuda nos sintomas e na progressão da doença.

Ele também precisa do óleo de cannabis para conseguir dormir, por isso, em 2014 ele resolveu plantar.

Mudou de casa para fazer o seu próprio jardim sem enfrentar olhares, conheceu pessoas que também plantavam para fins medicinais e conseguiu as sementes.  

 Por três vezes o aposentado entrou com o pedido de Habeas Corpus para o plantio. No entanto, os juízes sempre encerravam o caso com a alegação de que não tinham capacidade técnica para julgar.

Na quarta vez, a juíza alegou que ele poderia estar traficando, por isso, enviou a Denar (Delegacia de Proteção ao Narcotráfico) até a sua casa.

“Eu já esperava a polícia na minha casa há muito tempo. Quando eles chegaram, eu até brinquei que eles tinham demorado muito”, lembra Gilberto.

Felizmente as plantas não estavam em casa no dia pois tinham pegado pragas, mas ele não negou o cultivo. Foi até a delegacia, assinou alguns papéis e foi liberado.

Depois do acontecimento, o HC finalmente chegou. Atualmente ele se tornou um ativista. Participa de algumas associações como a ACuCa e a Cultive, onde dá aulas de cultivo e dicas para quem está começando a cultivar agora.

Depende do juiz

O advogado Gabriel Dutra Pietricovsky acrescenta que mesmo com o laudo médico, autorização de importação e os resultados com a planta, a negativa pode chegar pelas mais variadas justificativas.

“Teve um juiz que disse para o meu cliente se virar e importar o medicamento, sendo que o remédio e todo o processo de importação custam três mil reais por mês (…) as pessoas são presas porque falam que estão plantando e querem um HC para continuar a plantar. Aí tem juiz que manda destruir, faz apreensão, tem todo o tipo de juiz.” Ressaltou.

Ele ainda acrescenta que alguns juízes que estão chegando agora, são mais abertos a decisões assim. No entanto, figuras mais velhas, ainda tendem a ser mais resistentes.

Mas é o crescimento de pedidos de Habeas Corpus que parece estar mudando a visão das autoridades. Segundo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, as solicitações para pareceres técnicos estão crescendo.

O Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus), que auxilia magistrados paulistas na tomada de decisões em processos que envolvam Direito da Saúde, está recebendo uma demanda frequente sobre o uso da cannabis medicinal.

Duas advogadas da Rede Reforma, um grupo especializado em defesa de pacientes que utilizam a planta, Cecília Galício e Gabriella Arima, acrescentam que para conseguir o HC vai depender de uma série de fatores, como a cultura do local onde está tentando o documento, o tribunal e principalmente o juiz.

“No final a gente tem que lembrar que somos julgados por pessoas, com suas crônicas e é difícil ser imparcial e com base nas suas próprias concepções” acrescenta Cecília.

Na maioria das vezes o cultivo é a alternativa para a dificuldade de acesso ao remédio. O único produto nas farmácias custa mais de dois mil reais e os óleos importados também não são baratos.

Há até um Projeto de Lei que visa o cultivo por empresas em solo brasileiro, mas desde que a PL 399/2015 foi para câmara dos deputados, só tem causado divisão de opiniões.

Atualmente, apenas duas associações são autorizadas a cultivar a planta, o resto prática desobediência civil. No entanto, elas não dão conta de atender a todos os pacientes.

Prisão por plantar remédio

Uma situação difícil, que complica a vida de quem não consegue o tratamento por vias legais. Como no caso de um paciente de São Paulo, que foi preso por não ter um HC.

O caso está sob segredo de justiça, por isso ele não pode se identificar. Mas as advogadas da Rede Reforma, que estão à frente do caso, contam que histórias como a dele são recorrentes.

Arte: Justin Renteria

Motorista de aplicativo, sentia dores na região da lombar que não passavam e os médicos não conseguiam identificar.

Com um histórico de hérnia de disco e cirurgias na região do corpo, ele encontrou na planta o alívio para as dores.

Ele aprendeu a plantar na associação Cultive, e fez o seu próprio remédio durante três anos, até ser preso por cultivo ilegal de cannabis no ano passado.

“Foi um dia normal. A minha família sempre soube que eu cultivava no meu apartamento. Mas a minha filha começou a namorar e eu tinha medo do namorado dela ver, por isso eu aluguei uma casa. A ideia era fazer um cômodo para plantar, mas veio a COVID-19 e não tinha mais fluxo de gente que costumava ter (na rua da casa alugada). Algum vizinho deve ter me visto, não sei. No dia 21 de setembro, quando eu estava saindo, a polícia chegou”.

 O homem foi preso em flagrante. Ele dormiu na delegacia e no dia seguinte foi para o presídio.

Quando foi levado para a delegacia, ele mostrou todos os documentos que comprovam que não era tráfico, mas uso pessoal, porém isso não convenceu o delegado.

Ele ainda ficou um dia na penitenciária, mas foi solto depois e está respondendo em liberdade. No entanto, o que mais o afetou foi ficar sem a medicação.

“Estou a quatro meses sem vaporizar e está sendo bem difícil (…) não consigo trabalhar pois é muito incômodo sentar no banco do carro, por isso, precisei trabalhar de entregador com uma moto. (…) Estou ganhando um terço do que eu ganhava, isso mexeu com a minha vida inteira.” Completa.

Depois do ocorrido, o pedido de habeas corpus foi negado, mas ele está tentando novamente. “Tenho medo de não conseguir (o HC) e medo de voltar lá para dentro (do presídio)”, diz.

As advogadas não tem um prazo para a decisão do judiciário, mas segundo elas, mesmo se for decidido amanhã, o paciente ainda precisará plantar a cannabis, esperar crescer e um ciclo inteiro para utilizar.

“A nossa percepção é que o Habeas Corpus é uma ferramenta de denúncia contra o Estado. A impetração de um HC tem um duplo papel, não só de resguardar o paciente, mas denunciar a violência de Estado que são as prisões de posse de drogas.” Ressalta a advogada Cecilia Galicio.

Limitação de plantas

Um dos motivos pelo qual o delegado não acreditou no homem foi a quantidade de planta, que na opinião dele, era muito alta para o tratamento.

Segundo o professor de Farmacologia Clínica e de Canabinologia da UNILA, o uso da planta para fins medicinais não é tão simples, para cada condição há uma quantidade e uma concentração específica de canabinoides, que ainda pode variar de pessoa para pessoa.

Atualmente, há até testes de DNA para encontrar a dose adequada.

“Não dá para estipular um número de plantas, a cannabis é uma planta muito delicada e você quer que ela esteja totalmente sem bactérias e pesticidas para fazer o remédio Por isso, algumas acabam perdendo e você tem que selecionar, é um processo trabalhoso” diz a mãe pernambucana por experiência própria.

Foi por isso que outro paciente, Fábio Camargo (46), do Paraná decidiu pedir o seu habeas corpus sem estipular o número de plantas.   

Ele foi diagnosticado com bipolaridade em 2015, onde precisou passar por uma série de medicações. Depois de um tempo, começou a ter problemas no fígado, por conta dos remédios.

“Foi o próprio médico que me disse, ‘você já experimentou fumar um baseado? pelo teu histórico, pode te ajudar bastante, inclusive ajudar a tirar os remédios’. Eu estava tão debilitado e queria algo que me ajudasse a trabalhar” ressalta.

Hoje ele planta, fuma e usa o óleo, mas por conta da sua exposição nas redes sociais, resolveu entrar com um processo para obter o Habeas Corpus.

Um ativista misturado com influencer. No Instagram, por exemplo, ele tem mais de três mil seguidores, onde o seu assunto principal é a cannabis.

“Em 2019 entrei em uma crise de desespero, pois qualquer coisa que eu falasse ou fizesse poderia ser considerado tráfico de drogas. (…) (No processo), uma das coisas que eu pedi, além do HC, foi a permissão de transporte para fazer palestras e direito de divulgação”. Ressalta.

Dificuldades

Desde que entrou com o pedido, o seu processo já está em terceira instância e aguarda julgamento.

Primeiro, ele decidiu não informar o número de plantas, por causa das perdas significativas. Ele tinha medo de precisar plantar mais que o permitido e perder o direito.

Assuntos como esse não acabam na decisão do juiz. Segundo os advogados consultados para esta matéria, mesmo com a autorização do plantio, é comum visitas periódicas da polícia para saber se não há algum tipo de desvio.

Depois que o seu pedido de Fábio Camargo foi negado, ele resolveu tentar novamente. Dessa vez, ele colocou um número de 12 plantas.

“Indiquei o número de plantas, a genética, os meus avanços com o óleo caseiro, que o óleo nacional não atende ao que eu preciso, três laudos médicos indicando que eu não tenho efeitos colaterais, indiquei tudo o que podia. (…) No final, negaram de novo dizendo que eu não tinha indicado o número de plantas, acho que nem leram”, ressalta.

A única coisa que Fábio conseguiu até agora foi a proteção do plantio até que todo o processo seja finalizado. Por isso, ao menos ele não precisa se preocupar com a polícia batendo na sua porta.

Ele criou até uma petição, com duas mil assinaturas para credibilizar o seu interesse no plantio para o uso medicinal e aguarda o julgamento desde o dia oito.

“Se eu sou obrigado por lei a cometer um crime, para conseguir um direito, então não é crime, isso não pode ser considerado crime” conclui.

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