“Não posso deixar o meu filho sem tratamento, mesmo que seja ilegal”

“Não posso deixar o meu filho sem tratamento, mesmo que seja ilegal”

Sobre as colunas

As colunas publicadas na Cannalize não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem o propósito de estimular o debate sobre cannabis no Brasil e no mundo e de refletir sobre diversos pontos de vista sobre o tema.​

Conheça a história da Marli, uma mãe que luta pelo fornecimento do óleo de cannabis, único tratamento efetivo para o seu filho.

Marli Terezinha Weyand reduziu ao máximo as doses do óleo de cannabis do seu filho, Guilherme Joaquim Carmo, de nove anos. A medida foi uma tentativa desesperada de fazer o tratamento durar mais tempo.

Isso porque o estado não está mais fornecendo um canabidiol importado da Suíça, fundamental para ajudar a reduzir os sintomas de autismo e a síndrome rara do menino. Os pais conseguiram o custeamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) através de uma ação judicial. 

Contudo, como em muitos casos, o estado simplesmente parou de fornecer. O  remédio vem da Suíça e cada frasco custa mais de R$1.000,00, mas o menino precisa de 7. O que totaliza quase R$9.000,00 ao mês. 

Desde março, Marli vem reduzindo a dose, além de fazer rifas para arrecadar dinheiro e comprar mais óleo. 

Foto: Arquivo Pessoal

Três condições sérias de uma vez

Foi depois de uma cirurgia aos dois anos e meio que o médico do Guilherme pediu para os pais procurarem um neurologista. Depois de vários exames, eles descobriram que o menino tinha a chamada Síndrome de X Frágil. 

Trata-se de uma condição  genética e hereditária que causa desordem no cromossomo X. Capaz de afetar um menino a cada dois mil e uma menina a cada quatro mil, a maioria dos casos é assintomático, Contudo, quando há sintomas, ela causa deficiência intelectual e distúrbios de comportamento. 

Por causa da síndrome, os médicos também perceberam que o menino também tinha autismo. Depois da Síndrome de Down, a condição é a que mais provoca algum tipo de retardo mental. 30% deles são autistas.

Posteriormente Marli descobriu também que o seu filho tinha epilepsia de foco. O diagnóstico demorou, pois ao invés de ter convulsões visíveis e perceptíveis, ele ficava ausente. 

Este tipo de epilepsia não é incomum. Aqui ela se manifesta de maneira mais silenciosa. Conhecida também como “desligamento”, são os momentos que a pessoa fica com o olhar fixo em um determinado ponto, sem saber o que acontece ao redor.  

Este fenômeno não dura muito e por vezes, familiares e as pessoas ao redor nem percebem que aconteceu. No entanto, juntando todos os problemas, a situação não era fácil.

Ele não falava,  não tinha uma vida normal. Gritava muito, passava cocô na parede, mordia, dava socos”, ressalta a mãe.

 Uso da cannabis

Assim como várias mães, Marli também descobriu a cannabis através da internet. Ela percebeu que muitos pais de crianças com autismo estavam utilizando o novo método, mas ainda não estava convencida. 

Criada no interior do Rio Grande do Sul, em Venâncio Aires, Marli cresceu com a ideia de que maconha era uma coisa ruim.  

Fui criada naquelas de que maconha é uma droga e se fumar e ter contato vai morrer.  Por isso, quando falei que tinha interesse em dar (o óleo de cannabis), e quando a médica concordou, eu que não aceitei.”, lembra.

Guilherme começou a utilizar a cannabis em 2018, mas foi nos primeiro meses que a família começou a notar a diferença. 

O comportamento do menino melhorou e a mãe escutou ele falar as primeiras palavras pela primeira vez. “Eu nem tinha mais esperança de que ele pudesse falar”, acrescenta.

Não é de hoje que a cannabis tem mostrado resultados positivos tanto no tratamento de autismo como no tratamento de epilepsia. Estudos científicos já mostraram melhoras significativas em áreas específicas do cérebro. 

Foto: Arquivo Pessoal

Estudos 

Em 2018, a Elsevier realizou um estudo sobre o uso do canabidiol no tratamento de autismo, com pesquisas pré-clínicas e clínicas. O objetivo era entender o envolvimento do sistema endocanabinoide e o neurodesenvolvimento nas desordens físicas e mentais, além de saber se o canabidiol (CBD) era seguro e eficaz para o tratamento.

O óleo não se mostrou um santo milagroso, mas sim um suporte para diminuir alguns sintomas. A pesquisa relatou que o canabidiol pode ter algumas propriedades pró-sociais em estudos pré-clínicos.

30,1% relataram melhoras significativas e 53,7% uma melhora moderada. Em outros estudos a longo prazo, os sintomas mais amenizados foram ataques de raiva, hiperatividade e melhoras no sono. 

Já para Epilepsia funciona assim: Através do Sistema Endocanabinoide, o nosso corpo produz canabinoides, que ativam receptores espalhados por todo o corpo que regulam a maioria das funções do organismo a nível celular.

Algumas plantas também possuem canabinoides, chamados fitocanabinoides. Quando ingeridos, eles acabam desenvolvendo uma função parecida com a que nós produzimos, além de auxiliar quando nos falta.

Os canabinoides agem diretamente no corpo e no Sistema Nervoso Central (SNC) modulando as funções neurológicas.

O canabinoide CBD,  por exemplo, é capaz de controlar as descargas dos neurotransmissores, o que consequentemente pode reduzir tanto a intensidade das crises como a frequência delas.

Há casos de pacientes que relatam uma melhora já nos primeiros meses, com uma redução cada vez menor de convulsões.

Dose ideal

O menino só começou a melhorar com um óleo específico que precisa ser importado. A mãe até tentou administrar um outro tipo mais barato, mas os resultados não eram tão bons.

Embora a cannabis sirva para uma série de condições, não é tão fácil achar uma dose ou remédio ideal.

Há famílias que demoram até um ano para descobrir o óleo certo. Isso porque cada organismo é único, enquanto alguns pacientes precisam de doses maiores de CBD, outros de concentrações maiores de tetraidrocanabinol (THC), para a mesma doença, por exemplo.

Hoje em dia, já existem testes genéticos que indicam a dosagem correta para cada pessoa, mas eles custam caro. 

A condição tratada também é outro fator importante que pesa na hora de escolher um óleo.

O remédio utilizado por Guilherme vem da Suíça, e cada frasco custa R$1.200,00.Contudo, Guilherme precisa tomar 3,5 ml duas vezes por dia, o que resulta em sete frascos ao mês.   Sem poder bancar o tratamento, a mãe entrou com uma ação judicial para o custeio pelo estado.  

“Teve até uma associação que entrou em contato comigo, mas a Síndrome de X Frágil é dificil de tratar. O Guilherme não pode usar os medicamentos para  autismo, a gente já tentou todos. O óleo foi o único q não deu efeito colateral”, ressalta.

Foto: Arquivo Pessoal

Custeamento

Segundo o consultor jurídico  Pedro Gabriel Lopes, que trabalha na área de regulamentação de saúde, é possível entrar com uma ação para o fornecimento do óleo de cannabis pelo SUS.

Principalmente depois do entendimento do Superior Tribunal Federal (STF) em março de 2020.

Pela maioria dos votos, o STF destacou que é constitucional o fornecimento pelo estado, em caráter excepcional, de medicamentos de alto custo que não constam na lista do SUS.

Por outro lado, você tem que praticamente provar que a cannabis é a única solução para o seu caso.

“Muita gente brinca falando para eu dar maconha para ele. Se fosse a solução, eu mesma iria na boca de fumo”, diz. 

Empurrando outro remédio

Mas mesmo com a causa ganha, por muitas vezes o estado para de fornecer ou até mesmo nem cumpre a determinação. Segundo Marli, a justificativa dada para a negativa é que há um óleo nacional que pode ser substituído.

Em março do ano passado, a Anvisa autorizou o primeiro produto à base de cannabis nas farmácias depois da Resolução 327/19. A decisão autorizou a comercialização de óleos que ainda não são remédios.

A nova categoria chamada de “Produtos derivados da cannabis” ainda deu um prazo de cinco anos para que as farmacêuticas façam todos os testes para que o óleo se torne de fato um medicamento.

Até agora, o óleo da brasileira Prati-Donaduzzi é o único produto nas farmácias depois da resolução, embora outras marcas também já iniciaram o processo para a aprovação. 

Embora Marli insista no Promediol, o pedido é negado “Só colocam indeferido e não falam o porquê”, complementa.

Promediol nas farmácias

Em agosto a Anvisa concluiu a análise para a comercialização do Promediol no Brasil. A empresa com o mesmo nome só está esperando a publicação do registro no Diário Oficial para começar os trâmites. 

A expectativa é que o remédio esteja nas farmácias até no máximo, no início do próximo ano.

Diferente do produto da Prati-Donaduzzi, que anunciou o seu primeiro óleo de cannabis a um valor superior a dois salários mínimos, o preço aplicado pela farmacêutica suíça será de US$65 dólares, o que equivale a R$325,00

À Folha de S. Paulo, a diretora e sócia da farmacêutica suíça, Adriana Schulz, disse que manterá o valor do produto importado.

Contudo, a Anvisa analisa os produtos separadamente. A empresa tem, pelo menos, três tipos de óleos diferentes e o usado por Guilherme não é o mesmo que foi aprovado. 

Foto: Arquivo Pessoal

Outras alternativas

Por causa da dificuldade de acesso, muitas famílias recorrem ao plantio de cannabis através de um habeas corpus , que dá o direito de cultivar sem ser indiciado. A estimativa é que mais de 300 pessoas tenham ganhado o direito no país.

A medida requer uma série de exigências e também precisa ser feita por via judicial. Embora o caminho seja longo, esta é uma alternativa cogitada por Marli.

“A rifa só vai ajudar a bancar o tratamento por dois meses e eu não posso deixar o meu filho sem tratamento mesmo seja ilegal”, diz. 

No entanto, nem isso é possível. Marli relata que o seu residência  é pequeno, não é possível plantar nem escondido. 

Por outro lado, há também jardineiros que plantam de forma clandestina, mas é uma opção bastante arriscada, pois não é possível ter uma garantia das concentrações e do tipo de planta.

Marli também acrescenta que há também aproveitadores que tentam empurrar azeites de oliva.

“A gente participa dos grupos de famílias que usam e vemos muito disso. O bom é que a gente consegue se alertar, pois é tudo família carente que não tem dinheiro”, conclui.

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